A vantagem comparativa de contempto sobre elogio/consideração é absurda. São necessários (hiperbólicamente, claro) 1000 vezes mais elogios “contemporâneos” pra compensar uma criticazinha negativa recebida na infância. E, na maioria das vezes, nem compensa, só complementa.
Talvez a questão do tempo faça diferença, mas mesmo assim.
Vira-se um bolo de traumas e rejeições, devidamente justificadas por considerações próprias e respaldadas por alheios.
E por assim ser, os tais elogios descem tão mal pela garganta seca. Na maioria das vezes nem se sabe lidar com os mesmos. Ou se sabe, muito mal.
Uma pessoa quem você muito admira te falar que "se eu fosse homem, queria ser você" é espetacular, mas dói. Dói a consciência e tudo mais. Fica-se esperando um "eu estava brincando" ou na pior das hipóteses "você me decepcionou".
Na verdade eu queria um reset, um apertar simultâneo dos botões para zerar o relógio-calculadora digital (espiritual ou não).
O Sacolão já apareceu por aqui algumas vezes. Um grande amigo, ele, o Sacolão. Trabalhou mais de 6 anos em Sacolões, de contagem ao centro da cidade. Isso o presenteou com requintes de tosquice, capacidade espetacular de espalhar disse-me-disses(provavelmente pelo convívio com senhoras fofoqueiras bairristas que fazem da ida ao sacolão um importantíssimo evento social), uma força assustadora, visão do mundo influenciada pela crásse baixa, e, entre outras tantas, o apelido.
Agora ele é assistente de um estilista mineiro famosinho, trombando e aprendendo a lidar com o pseudo-glamour do meio. Claro que o estilista é uma moça. E claro que como o sr. Sacolão é também motorista e é aspirado pelos viadinhos todos do meio, vez ou outra tem que lidar com uma paranóia desagradável – a dos outros acharem que ele, macho viril sacolaniano, anda tendo um relacionamento pica/bunda com o chefe.
Dia desses, em um grande hotel da cidade onde o chefe moçoila habita, o Sr. Sacolão deixou o carro na garagem e subiu de elevador acompanhando o patrão. A comissão do flamengo estava hospedada no hotel e foi assim que o goleiro Júlio César e dois membros da comissão técnica entraram no elevador. Os três calados, enquanto o Sr. Sacolão recebia ordens do chefe. Eis que o Sr. Goleiro, achando se tratar de um pederasta e seu parceiro, resolve brincar. Olha para o Sacolão com uma cara irônica, e, alterando olhares entre os dois:
- É o do cabelo (menção ao corte demi-mohawk do sacolão)....Você tá bem, heim !?
O Sacolão entendeu muito bem a piadinha. Queria não ter entendido. Mas a oportunidade acabara de ser dada, e ele não a perderia. Respondeu rapidamente:
- Que isso cara !!! Comparado com você, você tá muito melhor...
O goleiro, sem saber do que se tratava:
- Por que ?
- Ah...porque se a gente for analisar, falaí...(um tapinha no ombro, uma apontada com o dedo)....você já chupou o pau do Ronaldinho !!!
E então temos, dentro do pequeno elevador, o altíssimo goleiro partindo pra cima do amigo Sacolão, os dois camaradas da comissão técnica segurando o grande Julio César, Sacolão em outro canto se derretendo em gargalhadas, e o chefe moça, que segurou o gritinho agudo e ficou no outro canto, com os olhos arregalados e as mãos como que protegendo seu delicado rosto.
Quando se é um merda, nos envolvemos em situações merda. Às circunstâncias merda reage-se com “performances” merda e as interações merda efetivam o caráter de um merda. Vez ou outra consegue-se, com a devida jocosidade, ser menos merda em alguma conjunção específica. Contar aos outros esse relativo “sucesso”, efetiva sua posição de merda, ou de bosta, se for o caso. E não o contrário, seja lá o que for. Chamemos de celebração da insignificância: quando você é o outro, e o outro é.
Caminhando em direção ao banheiro de um grande shopping, após uma sessão de cinema. Na minha frente, aparentemente com o mesmo destino, dois casais. Dois quarentões grisalhos e suas namoradas loiras de no máximo vinte anos, muito vistosas e desinteressantes no que não diz respeito a atributos físicos. Os dois senhores exibem oralmente a materialização do capital em suas vidas, falando sobre a BMW nova e a viagem a costa de algum paraíso caribenho cheio de miseráveis e grandes hotéis e praias e o barco novo que comprara e o relógio de ouro de uma marca suiça e blábláblá. Continuo caminhando em direção ao banheiro acompanhado do meu querido cigarro, protagonista do que viria a acontecer. Ao entrar no banheiro quase ao mesmo tempo que um dos quarentões, recebo um olhar discriminante e um comentário mais ainda:
- Oh amigo, é proibido fumar dentro do shopping…
- Ah é !? Você é segurança daqui ?
Ele se direciona ao mictório, eu a cabine. No caminho de volta ainda consegui vê-lo na frágil posição mijal.
Com o cigarro no canto da boca, lavando a mão. A pia ao lado é acionada pelo digno senhor integridade, que mais uma vez, não resiste e, em tom emputecido:
- Existem leis que proibem você de fumar dentro do shopping !
A vontade era de perguntar pra ele quantas leis ele já ignorou ou atropelou para comprar o caríssimo terno que usava, ou o brilhantíssimo sapato, ou a namoradinha loira que beira a minoridade...mas, sejamos sensatos.
- Ah existem ?
- Existem !!!
- Pois é...eu ouvi falar. Ouvi falar também que existe uma outra que proibe dirigir bêbado. E outra também que proíbe a compra de mísseis por organizações que não o estado. E muitas, muitas outras.
Agora já enxugando minhas mãos e imaginando como seria esfregar o rosto conservado do quarentão no asfalto gritando “e isso, heim filhodaputa ?! a lei permite ???”, esboçava a minha saída de cena.
Caminho em direção a porta. O sr. vem atrás. Ou melhor, ao lado. Insistindo.
- Você está desobedecendo a Lei meu amigo, e vai me acompanhar até o segurança !
Saco. Parei. O sr. para na minha frente. No final do corredor, Dark testemunha a cena, olhando com cara de espanto e incentivando meu senso de humor. O situação requeria uma declaração:
- OK senhor. Vamos com calma. Em primeiro lugar, eu sou seu amigo ?
- uhm...Não.
- Então, pare de me chamar de amigo. Eu não o sou, e nem pretendo ser. O que nos leva a segunda consideração – o senhor está defendendo uma lei estatal, insistindo que eu a obedeça, defendendo-a como cidadão...é isso ?
- é !!!
- Não obedecerei ! Ponto. Se quer um respaldo para a minha desobediência, pense numa lei de algo considerado muito maior – chama-se livre arbítrio - o senhor sabe muito bem o que é.
- Tá, mas...
- Calma sr., deixe-me acabar de falar. Estamos no terceiro ponto. Eu não irei ao segurança com o senhor. O senhor pode tentar me levar a força, o que, honestamente, não recomendo. Recomendo no entanto, se quer mesmo interferir no meu livre arbítrio, que procure o segurança e peça-o que me interpele no meu caminho para o meu carro, salvaguardando a possibilidade do meu cigarro acabar durante esse tempo. Como o senhor pode ver, restam-me mais ou menos três tragos.
- Então apague !
- Calma senhor, tenho mais três tragos e um quarto e último ponto a esclarecer.
Uma pequena pausa para dois dos três tragos.
- O senhor gosta de filmes ?
- O QUE !?
- Calma. Só estou perguntando se o senhor gosta de filme...o sr. gosta ?
- Gosto ! E daí !?
O terceiro trago e o cigarro é apagado por mim no cinzeiro do shopping. O senhor aguardando a baforada.
- E daí senhor, que isso é vida real. VIGILANTE é coisa de filme. De filme e revista em quadrinho. Aqui, herói que tenta voar se estatela no chão. Boa noite e cuidado com a atitude.
Viro as costas, e começo andar, com o senhor ainda resmungando que ia chamar o segurança pra me colocar pra fora e coisas parecidas. Depois de uns cinco minutos de silêncio caminhando em direção a saída ao lado do Dark, ele se manifesta:
- Porra Pedro, quando te vi saindo do banheiro conversando com o cara pensei que tinha ficado amigo dele mijando. Foi mal !
- Foi mal o que ?
- Você fez um inimigo. Foi mal pois subestimei suas capacidades sociais.